a arquitectura milagreira, por ssru

Outubro corria calmo. O mês da arquitectura festeja-se com umas festas e umas exposições e um concurso de ideias e mais uma iniciativa anual da Ordem dos Arquitectos a lembrar que não se esqueceu da sua função de dignificar a arquitectura e as condições de trabalho dos arquitectos, com uma campanha muito pertinente – “Olhe à sua volta – ainda acha que não precisa de um arquitecto”. A campanha tem piada pois apela ao sentido de avaliação e do bom gosto dos portugueses que, ao lerem o cartaz e ao olharem em volta constatarão que afinal estes 40 anos que passam desde o decreto-lei 73/73 deixaram-nos a todos muito mais pobres.

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E a pacatez acaba quando, ainda antes de percebermos quem tinha ganho o Concurso de Ideias do Quarteirão da Companhia Aurifícia, em grande estrondo circula pela comunicação social uma proposta estapafúrdia, penúltima classificada em 12.º lugar, de relocalização da Ponte Maria Pia, no interior, no centro geográfico do terreno em estudo. Perguntamos ao Bandeira, “então pá, o que é isso?! Ah, não ligues, é gozo …foi só uma brincadeira!”. Espera lá…!

Mas ó Bandeira, até as brincadeiras têm um preço! Uma coisa é “a gente espirrarmos” uma parede na Rua da Sofia (que fica lá quase na mouraria) e pormos todos aos pinotes a bater palmas e o gabinete a fazer horas extras. Outra coisa é vires pr’aqui gozar com o nosso património, que já é tão difícil de manter intacto e com a nossa cara, que por acaso não tem rosto. Ou melhor dito por um grande arquitecto, de nome José Gigante (o nosso Gigas): “com todo o respeito pelos meus dois colegas arquitectos, acho a ideia disparatada, própria de quem teima em dissociar a obra de arte do contexto onde se fundamenta a sua forma. Mais uma vez é a exploração de um filão para deliciar “basbaques”…e admiradores da “esperteza saloia”. E aproveito para citar os Jáfumega: ‘A ponte é uma passagem p’rá outra margem…’”

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Pois é, a nossa querida comunicação social ávida de basbaquices para fazer páginas de notícias, encontra na vossa proposta um manancial de reality-show e vocês começam a dar as entrevistas e a cair na esparrela e a quantificar a solução e a tornar a coisa fazível como se o que ali está, fosse um objecto inútil como diz a jornalista na peça. Morreu. Kaput. Foi a indigência que a tornou inactiva. E o nosso silêncio…

E depois um gaijo que a gente até curte ler de vez em quando, diz: “10 milhões para se adquirir o terreno da Companhia Aurifícia e 10 milhões para desmontar a ponte e reconstruí-la, ali, magnífica e bela, no meio da minha cidade. Diria, de olhos fechados, que o investimento se pagaria rapidamente com o turismo. Que este projeto reforçaria um tema da campanha eleitoral – a do Porto como grande cidade da arquitetura. E que, tendo nós Eiffel – entre Nasoni, Siza Vieira, Souto de Moura, Rem Koolhaas (e muitos outros) – não devíamos deixar escapar entre os dedos do convencional um milagre da imaginação. Esta ideia é um milagre de uma nova geração. Irreal tolice populista!

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Uma má proposta é sempre MÁ, qualquer que seja a conjuntura económica, mas esta é tão só criminosa e irresponsável. É que, ainda por cima, tu és professor na UM e o Ramalho é parente de grandes arquitectos como o Pedro, que foi professor na escola e o Luis, que é um génio e um espectáculo de pessoa. Já viste a bandeira que estás a dar aos teus alunos, dizendo-lhes que podem c_g_r, assim como tu, no valor patrimonial das coisas. Fazias um milagre se agregasses ali todo o pessoal que se quisesse atirar da ponte abaixo e sem eles saberem colocavas uns ‘airbags’ no fundo, que ao menos já evitavas a mortandade que se passa em baixo no rio e que ninguém quer falar.

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Na nossa gíria técnica equipamentos como esta ponte, viadutos e afins, costumamos chamar de “obras de arte”. Mas se querias plantar ali uma obra de arte escultórica porque não pegaste numa coisa como a do Cutileiro e colocavas ali, com o esplendor do colorido a ouro (aurifícia) e com uns 100 metros de altura. Era só “charters” de turistas a aterrar no aeroporto… Chega a ser doloroso, imaginar que foi aqui nesta encosta sobre a Ponte Maria Pia, que tu começaste a dar os primeiros passos na aprendizagem da arte da arquitectura. Para nada, ou para isto!

o “primus inter pares”, por ssru

Quem assistiu às suas aulas, recorda com saudade o colossal génio de um homem carinhoso. A nossa última aula permanece ainda gravada na memória colectiva, sobretudo aquela ovação final da sala em pé, que estremeceu todos os corpos vivos. Ter tido o privilégio de entrar em sua casa foi quase deambular num santuário onde se respirava a verdade do Universo. O Mestre Fernando Távora era tudo isto e muito mais!

O mês de Outubro é o tempo de celebrar a arquitectura e relembrar Távora. Os Arquitectos Portugueses reconhecem a sua genialidade, a Universidade do Porto considera-o uma Figura Eminente, mas o Porto ainda lhe deve o tributo merecido. Como ele escreveu: “Deixar morrer a cidade portuguesa, como vem acontecendo no nosso quotidiano, é um acto de suicídio colectivo”.

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“Fernando Távora Homenageado como Figura Eminente 2013”, in UPORTO Alumni 18

Anualmente, a U.Porto celebra um dos seus primus inter pares. Alguém que pelas suas excecionais qualidades humanas, pedagógicas e científicas se distinguiu na história da Universidade e contribuiu de forma indelével para o seu engrandecimento. A homenagem pressupõe a atribuição do título de Figura Eminente à personalidade escolhida, bem como a organização de um ciclo de iniciativas lembrando a sua vida e obra.

O arquiteto Fernando Távora é a Figura Eminente da U.Porto 2013, pelo que, até ao final do ano, o seu legado pessoal, académico e profissional inspirará encontros científicos, instalações expositivas, edições de livros, entre outras iniciativas. “Desta forma estaremos, seguramente, a promover a valorização histórica do homenageado e a transmitir o seu exemplo às novas gerações”, diz o reitor da Ll.Porto, Marques dos Santos, para quem Fernando Távora é uma “referência maior, não apenas da arquitetura nacional, mas também da cultura portuguesa e da sua capacidade de se projetar no mundo”.

A celebração da Figura Eminente 2013 teve início a 23 de maio último, no Salão Nobre da Reitoria, com uma sessão que incluiu a leitura de textos do arquiteto pelo encenador Jorge Silva Melo, a projeção de um filme sobre o homenageado e a-apresentação da publicação “Fernando Távora – ‘Minha casa’, Fasciculo 1, Prólogo”. No dia seguinte, a figura, o pensamento e a ação de Fernando Távora serviram de mote a um encontro de investigadores, que reuniu, também na Reitoria, vários especialistas em arquitetura e urbanismo.

O programa da Figura Eminente 2013 prosseguiu, a 4 de junho, com a inauguração, na Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva (instituída pela Universidade em 2008 e sita na Praça do Marquês de Pombal, nº 30), da exposição “Fernando Távora: uma porta pode ser um romance”. De resto, o conjunto de iniciativas desta homenagem está muito centrado no arquivo documental que a família do arquiteto cedeu à Fundação em 2011, sob regime de comodato.

A homenagem deverá conhecer novo momento alto com a abertura da programada instalação-exposição sobre a obra de Fernando Távora, que estará patente, de novembro a dezembro, no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR). Até ao final do ano, vão ter ainda lugar dois ciclos de conferências em que se cruzarão as histórias de vida e os livros que inspiraram Távora.

Fernando Távora (Porto, 1923 – Matosinhos, 2005) é considerado o “pai da escola do Porto”, na medida em que formou e influenciou fortemente muitos dos grandes arquitetos que integram o movimento pedagógico, cultural, artístico e arquitetónico que nasceu na Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) e prosseguiu na FAUP e na FBAUP. Diplomado justamente pela ESBAP, em 1952, Távora dividiu a sua carreira entre a arquitetura e a docência, em particular na FAUP – instituição de que foi presidente da Comissão Instaladora, professor catedrático e figura tutelar.

Entre as principais obras de Távora, destacam-se o Mercado Municipal de Santa Maria da Feira, a Casa de Férias no Pinhal de Ofir (Fão), a reabilitação do Centro Histórico de Guimarães, a ampliação das instalações da Assembleia da República, o restauro do Palácio do Freixo (Porto), a expansão do MNSR e a remodelação do Círculo Universitário do Porto.

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“Esquissos de Viagem”, Álvaro Siza – Porto 1988

o ensino da utopia, por ssru

Para a maioria das pessoas, Oscar Niemeyer (Rio de Janeiro, 15 de Dezembro de 1907 – Rio de Janeiro, 5 de Dezembro de 2012), foi um brasileiro que se tornou num dos maiores arquitectos mundiais de século XX. Para nós será ainda um dos maiores “obreiros” do século XXI. Para este nosso tempo o seu legado reserva-nos a possibilidade de sonhar, a utopia viável.

“Interessado em genética, considero os homens como uma casa. Uma casa pode ser melhorada mudando portas e janelas, pintando a fachada, acertando o telhado, mas continuará deficiente se o projecto foi mal concebido”. Dizia.

Como todo o grande arquitecto, considerava que a arquitectura tinha o propósito de mudar o mundo, mas que de pouco interessava alterar a paisagem se não mudassem as pessoas. Uma peça de arquitectura tem, para além da função, o dever de maravilhar e surpreender, possibilitando até aqueles que daquilo nada percebem, se sentirem tocados pela descoberta. A linha curva surge, em contraste com a rigidez severa da recta funcional do espírito da Bauhaus, fazendo lembrar as montanhas do seu País, o curso sinuoso de um rio, ou as ondas do mar, as formas de uma mulher. Como ele amou as mulheres!

Niemeyer lamentava a iliteracia dos jovens universitários, que ingressavam nas universidades para tirar um curso e se especializarem em apenas uma coisa, sem nunca terem lido sobre outros assuntos, sem o terem vivido, sem tomarem conhecimento das dificuldades da maioria da população. Acreditava que a arquitectura de nada servia perante as injustiças da vida. O importante era protestar.

No dia em que o mundo for mais justo, a arquitectura será mais simples. A sua palavra preferida é solidariedade.

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“SOBRE O ENSINO DA ARQUITECTURA”

“Na proposta que fiz para a renovação do ensino na Escola de Arquitectura de Argel, eliminava uma série de disciplinas, prevendo outras a meu ver fundamentais.

Dava mais ênfase aos problemas das artes plásticas, insistindo na prática do desenho figurativo que dá ao arquitecto maior desenvoltura ao elaborar seus projectos. E com isso a intimidade necessária com os problemas da pintura e da escultura, nos quais a arquitectura, quando possível, deve-se integrar.

E explicava que ao projectar uma parede o arquitecto deve imaginar como ela será concluída, se singela, simplesmente pintada de branco, ou enriquecida por uma obra de arte, uma escultura ou um belo mural.

Para isso ele deve conhecer os segredos das artes plásticas a fim de poder escolher o género de obra de arte adequado ao ambiente.

De outra forma ele deixaria de lado essa escolha necessária e a arquitectura comprometida, com a aplicação de uma obra de arte em local não previsto.

E insistia na ideia de que o ensino da arquitectura não se deve limitar à arquitectura propriamente dita. Mas invadir todos os sectores de cultura que a meu ver se entrelaçam e completam.

Daí referir-me à necessidade do arquitecto – mesmo pela tangente – se informar melhor, ler muito, sentir o mundo que o espera, suas mazelas e inquietações. Só assim ele poderá, desinibido, defender seus projectos e numa linguagem simples e convincente explicar o que com desenhos apenas nunca é bem compreendido.

E ter presente que a arquitectura não se pode limitar aos desejos das classes dominantes, mas atender aos mais pobres que dela tanto carecem.

E ser intransigente na defesa desse mundo sem classes que desejamos e no qual a arquitectura assumirá, um dia, sua verdadeira identidade.”

Oscar Niemeyer, in “Conversa de Arquitecto”, Campo das Letras – Editores, SA – Porto, 1997.

a cidade a prémio, por ssru

A Câmara Municipal do Porto institui em 1988 um prémio que tem como objectivo “incentivar e promover a recuperação do património arquitectónico” da cidade, visando distinguir o “melhor exemplo de reabilitação que tenha sido concluído, durante o período de dois anos a que cada prémio se refere”. No entanto só foi atribuído pela primeira vez em 1990 à recuperação do Edifício do Círculo Universitário do Porto, obra de Fernando Távora. De então para cá, foram galardoadas as obras do Edifício da Ordem dos Arquitectos (Helena Rente, José Carlos Portugal e Tiago Falcão), do Teatro Nacional de S. João (João Carreira), do Teatro Municipal Rivoli (Pedro Ramalho), da Ilha das Aldas (Pedro Mendes), do Edifício na Rua da Cerca, 5-7 (Barbosa & Guimarães, Lda.) e do Edifício na Avenida da Boavista, 1354 (António Portugal & Manuel Reis).

à esquerda, a secção regional do norte da Ordem dos Arquitectos

Desde o primeiro momento que o “Prémio João de Almada” tem angariado uma reputada importância no panorama municipal da reabilitação patrimonial, ao ponto de em várias edições as decisões de não premiar tenham sido tomadas com base no mérito das propostas, tendo na última edição, em 2008, o júri decidido não atribuir o prémio, optando por destacar três menções honrosas.

Na presente edição, a 13ª, o júri foi presidido pela Vereadora do Conhecimento e Coesão Social da CMP, Guilhermina Rego, e constituído por Jorge da Costa (em representação da Direcção Regional de Cultura do Norte), Alexandre Alves Costa (em representação da FAUP), Nuno Graça Moura (em representação da OA-SRN), Dulce Marques de Almeida (em representação da ARPPA – Associação Regional de Protecção do Património Cultural e Natural), Maria Susana Soares (em representação da Direcção Municipal de Urbanismo da CMP) e ainda por um representante da Direcção Municipal de Cultura da CMP. O júri já elaborou a proposta de decisão que foi ontem aprovada em reunião de câmara, tendo sido atribuído um primeiro prémio ao Palácio das Artes, projecto da autoria dos arquitectos Alfredo Ascensão e Paulo Henriques, bem como duas menções honrosas, uma para um edifício na Rua de S. Miguel e outra para a Escola Aurélia de Sousa.

O Jornal de Notícias da passada segunda-feira [JN 26-07-2010] revela que o júri destaca “o carácter e a dignidade da intervenção num edifício que tem uma história valiosa e que não é escondida, assumindo a reposição de uma identidade que se encontrava algo adulterada, fruto de sucessivas alterações ao longo do século XX”.

o Palácio das Artes, no Largo de S. Domingos

No fundo o que isto quer dizer é que é possível fazer bem feito e levar à prática a definição legal de “Reabilitação urbana”, que é: a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infra -estruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização colectiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios (no Decreto-Lei nº 307/2009, de 23 de Outubro – sublinhado nosso).

De entre os 21 candidatos, o júri reconheceu o “esforço da equipa projectista, que soube resistir a tentações de algum exibicionismo material”, e a “qualidade da operação de reabilitação perante o edifício pré-existente, deveras complicado, de pouca profundidade e com abundante material arqueológico”. Consideraram assim que a intervenção efectuada no Edifício Douro/Palácio das Artes é “um exemplo cuidadoso de valorização do património”. BRAVOS!

E como ‘não há bela sem senão’, encontramos ainda no mencionado artigo do JN, algo que nos deixou perturbados (mesmo recordando ainda a nossa primeira intervenção neste sítio), ao ponto de soltarmos uma gargalhada colectiva: (…): “Na lista, encontram-se, entre outras propostas, a reabilitação do quarteirão de Carlos Alberto pela Edifer com desenho do ateliê Miguel Saraiva e Associados” (…); isto com direito a uma referência despropositada ao empreiteiro responsável pela execução dos trabalhos, que no caso não interessa nada, uma vez que o prémio se divide entre o projectista e o dono da obra.

Ou seja, ser possível candidatar um conjunto edificado cuja intervenção violou o PDM da cidade, demolindo três edifícios na Rua de Sá de Noronha e esventrando outros dois na Praça de Carlos Alberto, que foram referenciados na Carta de Património pela mesma entidade ou serviço camarário que organiza o Prémio João de Almada, é algo que só passaria nas cabeças de certo tipo de pessoas, sem dúvida, gente digna da nossa maior comiseração. Sabemos que é algo que ambicionam ardentemente, até para legitimar uma espécie de intervenção e uma certa (des)orientação neste mundo tão desconhecido da ‘reabilitação patrimonial’.

o pátio luso em Carlos Alberto!

Giro, giro, era terem ganho qualquer coisita… isso sim!!!