o não-património #5, por ssru

A Praça de Lisboa representa para nós o paradigma da negação, uma contradição em termos, certamente um ‘caso-de-estudo’ pelo aspecto negativo!

É uma não-praça, um não-topónimo, um não-espaço comercial, um não-programa funcional, um não-exemplo de gestão do bem público, um não-lugar, enfim… um não-património. Sozinha encerra em si mesma e num só tempo ‘a degradação – a má reabilitação – o abandono negligente’ e por isso, ao contrário do que tem acontecido com esta rubrica, à “Praça do Anjo” iremos dedicar um só longo artigo.

A Praça – 1. lugar público e amplo geralmente rodeado de edifícios e onde desembocam várias ruas; largo; rossio; 2. largo onde se realiza uma feira ou um mercado [http://www.infopedia.pt/pesquisa.jsp], afiguram-se como as definições que melhor se ajustam ao caso em apreço.

"O Porto de Outros Tempos, Edição BPMP"

Tanto se disse e escreveu sobre a Praça de Lisboa, ou o Clérigos Shopping, ou o Mercado do Anjo, que acreditamos não trazer muito mais para acrescentar. Mas vamos tentar, esclarecendo a nossa perspectiva sobre o assunto e começando do início.

momento 1

O período de ocupação filipina representou para o Porto um momento importante na consolidação do poder civil e no incremento de trabalhos públicos. Filipe II reforçou a administração regional e o poder dos juizes, sendo prova disso a ordem de construir uma casa para a Relação e Cadeia em 1603, edifício que ruiu no século XVIII, dando lugar à imponente obra de João de Almada. A escolha do Campo do Olival para localização de uma obra deste calibre revela a importância que é concedida à urbanização deste subúrbio, realçando ainda preocupações no reordenamento dos espaços públicos envolventes, criando as primeiras alamedas do Olival, com a plantação de árvores e bancos para repouso.

extracto da planta de 1813

Com a restauração da independência surgem certas dificuldades para o poder civil, em contraste com o poder eclesiástico que continua a demonstrar um papel dinamizador, lançando importantes obras de assistência como em 1672 a do Recolhimento do Anjo, realçando de novo a importância concedida à zona do Olival. Por esta altura começam-se a desenhar algumas directrizes que irão ser desenvolvidos pelos Almadas, um século mais tarde

Por volta de 1762, a criação da Junta da Obras Públicas coincide com a intenção de centralizar num único departamento a direcção do desenvolvimento urbanístico do Porto. A primeira Junta é presidida por João de Almada e dela também faziam parte elementos camarários. Mal comparando, estaríamos a falar da primeira SRU da cidade (o que tem a sua piada), sendo que uma das preocupações foi a angariação de fundos através da criação de impostos sobre os vinhos, valendo-se dos rendimentos da Companhia de Agricultura e Vinhos do Douro.

O plano estratégico de desenvolvimento e expansão da cidade, que se começa a vislumbrar em 1784 numa extensa lista de melhoramentos, introduz a necessidade de criação de normas relativas à construção de edifícios, à composição das fachadas, obedecendo a uma regularidade tipológica de inspiração neoclássica.

extracto da planta de 1839

Com a vitória liberal em 1834, inicia uma nova fase da vida do Porto, onde se afirmava uma burguesia mercantil, enriquecida pela apropriação dos bens do clero que tinham sido nacionalizados e vendidos em hasta pública.

A atenção aos aspectos formais do desenvolvimento urbanístico é reforçada nomeadamente no reapetrechamento estrutural da cidade e a consolidação do tecido urbano, onde também se inserem as iniciativas de regular o abastecimento de géneros, concentrando as diversas feiras espalhadas pela cidade, em locais estrategicamente posicionados, como aconteceu em 1837-1839 com o Mercado do Anjo, criado para abastecer a zona central. Era aqui que se vendiam os frescos produtos hortícolas que as lavradeiras traziam dos arredores da cidade, chamando a si imensa população residente vizinha.

extracto da planta de 1892

No início do período republicano, o Mercado do Anjo perspectiva uma modernização com um projecto de Marques da Silva, apenas residualmente concretizado. A posterior construção de mercados periféricos, como o do Bom Sucesso, vieram alterar a importância e a função do Mercado do Anjo precipitando-o para a obsolência.

cruarb – fichas de obras

O tempo passava e este espaço central, de formato triangular, sobrava entre a dignidade das frentes urbanas vizinhas (clérigos, universidade e livraria Lello).

momento 2

Seria útil perceber que o entendimento destas questões históricas aqui introduzidas, fazem parte dos cânones que devem presidir a qualquer projecto de requalificação ou regeneração de um tecido urbano com esta singularidade.

Algo que manifestamente não encontrámos na intervenção promovida em 1992 pelo CRUARB, num projecto da autoria dos arquitectos António Moura, Luís Oliveira e Susana Barbosa, sendo prova física disso mesmo (para além de outras variáveis mais rebuscadas) o estado de degradação em que a praça se encontrava, volvidos apenas uns insignificantes (em arquitectura) 14 anos, até ao seu inqualificável abandono.

Este projecto cedo evidenciou fragilidades na estruturação e articulação com a envolvente, fechando-se em si mesmo e com uma alma diminuída pelo constante desinteresse das autoridades camarárias que parecem ter assumido um criminoso desleixo como factor para justificar a alienação deste moribundo espaço.

A iniciativa artística e comercial fervilha e, com a fibra que sempre a caracterizou através da história da cidade, recusa baixar os braços, mostrando aos responsáveis os caminhos evidentes para a resolução do problema. À volta da praça (onde deviam estar) pululam inúmeras actividades como o “Mercadinho dos Clérigos”, o “Se esta Rua Fosse Minha”, o mercado “Porto Belo” (como se a importação do nome fosse vital, quando existem outros bem mais tradicionais como a ‘Feira da Ladra’, que já se realizou, em tempos, aqui perto) e até a “Feira dos Passarinhos” é instalada no ‘descampado que se plantou’ em frente ao edifício da antiga Cadeia da Relação (??).

Parece clara a falha da ligação da praça com a Rua das Carmelitas onde principiam as Ruas da Galeria de Paris e de Cândido dos Reis. A entrada do estacionamento virado para os Clérigos, parece nunca ter levantado dúvidas a quase ninguém. A ocupação do espaço central da praça com um restaurante (?) e a deslocação da fonte da “Anja” para um canto, só parece esquisito a alguns.

Afigura-se evidente que o esforço da Cidade na recuperação daquele espaço poderia ser significativamente menor. Facilmente um conjunto de técnicos, mais ou menos dotado conseguiria recuperar aquela Praça com o que ela tinha e ‘fazer melhor’.

momento 3

“Desinteressadamente” a avidez de Privados aparece do Nada, de mãos-dadas com a CMP/SRU, percebendo a oportunidade num território central e economicamente aliciante. Não nos debruçaremos sequer na possibilidade do caderno de encargos do concurso público que se gerou, ser delineado de tal forma que só um concorrente e poucos mais pudessem responder, nem nas relações de amizade ou outras que os intervenientes teriam com os dirigentes da SRU ou da CMP. Para este artigo não será tão relevante. Fiquemo-nos apenas pelo facto da cidade estar até hoje, refém de um gigantesco Nó-Cego.

E do Nada aparece um projecto com ondas, de uma arquitectura-ovni, que se desliga de todos os valores históricos, patrimoniais e arquitectónicos da envolvente.

Com a curiosidade macabra de ser do mesmo autor que faz um sea life/oceanário sem ondas, em frente à ondulação marítima do Atlântico, transportando essa eventual falta de contextualização para uma espécie de “novo oceanário” com ondas, erigido no cimo do monte, esperando que a Torre dos Clérigos aguente tamanha sodomia.

Para completar o abstruso ramalhete, o espaço destinava-se a potenciar a extinção da mais famosa livraria do País e arredores. Felizmente que a crise económica não tem só aspectos negativos, pois o tubarão foi à falência antes de comer o peixinho colorido (o nosso “Nemo”).

Em conclusão, há dinheiro para inventar o absurdo e no entanto a Galeria de Paris há 100 anos à espera de dinheiro para uma cobertura, quase sem desenho arquitectónico (com estes arquitectos é melhor ser um mestre-de-obras… [nunca pensámos dizer isto na nossa vida]), para aliviar e proteger das intempéries uma zona social e comercial por excelência.

Haja Deus e Saúde, protecção mental para aqueles que ainda se preocupam, talvez demasiado, em esclarecer estas coisas das arquitecturas.

o não-património #4, por ssru

Há intervenções que nos chocam mais que outras, mesmo afastando do campo da opinião. O sentimento geral ou maioritário sobre determinada opção congrega em si uma avaliação que vai para além daquela feita pelos autores e pelos ‘autorizadores’ que tornaram possível um resultado desagradável.

Em centros históricos o espaço de manobra para resultados desagradáveis não devia existir!

Relembrando o que já dissemos sobre “propor melhor” [está intimamente ligado à capacidade de quem propõe, à qualidade da proposta e à qualificação de quem avalia. Para nós esta coisa de propor melhor é bastante complexa e tem muito que se lhe diga, principalmente quando constatamos uma mediocridade avassaladora em matéria de salvaguarda de património cultural…] tendo isto em mente, queremos mostrar – à semelhança do que fizemos nos artigos anteriores – alguns exemplos de não-património construído.

E ainda, outros exemplos (poucos) de intervenções que não alteram o valor intrínseco do edificado e acrecentam alguma contemporaneidade, sendo esta uma forma de fazer cidade, sem que o modelo novo deva depor o anterior. Mesmo assim não nos devemos esquecer que é assim que o Porto tem vindo a ser ‘re-construído’, foi isso que no século XIX fizeram aos edifícios dos séculos anteriores.

Para isso voltamos à Rua da Vitória, via fabulosa que serpenteia e ondula como um dragão alado. O primeiro exemplo foi encomendado pela Electricidade do Norte ao arquitecto António Dias e data do início dos anos 90 do século XX.

Mesmo que não percebam muito disto, como alguns de nós também não, estamos a falar do edifício semi-pintado de vermelho e com janelas gigantescas, sem telhado, que se vê da Sé na segunda foto (em baixo na imagem). Que tal a inserção urbana?

Com os exemplos seguintes pretendemos demonstrar que também é possível fazer uma intervenção contemporânea sem grande ruído.

São dois edifícios quase em frente um do outro, desconhecemos os autores, os promotores e o ano da intervenção, o que também é sintomático do que dizemos.

De novo, um ‘modelito’ que por muito que nos esforcemos não temos imaginação suficiente para explicar a sua existência.

Quem promoveu este trabalho em 1991 foi o CRUARB e o seu autor é o arquitecto Alberto Marcos. Segundo o livro de “Fichas de Obras de 25 anos de Reabilitação Urbana” trata-se de um edifício que alberga um equipamento colectivo e dois T2. Fantástico Porto.

Um pouco mais à frente o arquitecto Alberto Marcos, ao serviço do CRUARB, ainda nos brinda com mais uma obra desnecessária, em 2000.

Se repararem no edifício antes das obras, o aumento introduzido arruinou completamente a sua escala, cujas proporções pareciam ser mais adequadas ao local onde se insere. Aumentar mais dois quartos num T2, o que significa um T4 sem garagem, é na nossa opinião desnecessário, principalmente quando se faz assim…

Mas por fim, o ‘melhor’ exemplo, que prova a ausência de fiscalização de um bem precioso como o Património da Humanidade. Já ninguém exige que se fiscalize a Cidade toda a todo o tempo. Mas o Centro Histórico!?

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Não sabemos bem como é possível porque tudo parece demasiado mau. Se é a tijoleira na parede a imitar granito, se sãos os caixilhos envernizados, se o aumento no telhado, se o fabuloso estendal, ou se são os tubos de queda… tudo isto existe.

Onde param os responsáveis pelos crimes contra o património de um Povo?

o não-património #3, por ssru

A Rua da Vitória é uma via singular, sem dúvida, bastante ‘sui generis’. Para além disso também nos diz muito, toca-nos ao coração, bem como toda a Freguesia com o mesmo nome (que já de si é um nome fantástico), uma das que aglomera um grande número de património classificado monumental da Cidade.

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Comparando morfologicamente o actual traçado com a planta de 1892, verificamos que pouca coisa mudou. É quase uma ‘estrada’ rural, cheia de muros altos que guardam jardins e logradouros dos edifícios situados nas ruas contíguas.

Um desses altos muros (que pertence à extinta FDZHP) possui uma das mais estonteantes paisagens urbanas, uma vista de cortar a respiração, digna de um Património da Humanidade. Durante a guerra civil portuguesa, serviu de ponto estratégico de defesa da Cidade às tropas de D. Pedro que combatiam o seu irmão D. Miguel – a Bataria da Vitória (na face do muro ainda encontramos algumas mossas provocadas pelas balas dos canhões miguelistas que disparavam do lado sul, de Gaia).

Esta é uma das ruas do Porto de difícil acesso a uma viatura de emergência, certamente uma das 40 de que se falou nos ‘media’ recentemente, mas nem assim advogamos a destruição do património edificado para melhoria da circulação.

Os veículos de emergência devem adaptar-se e  terem as dimensões adequadas para permitir uma rápida intervenção, para além dos meios passivos de resposta, e das acções de prevenção, que não se vêem. Porque por aqui não faltam casas em ruína para arder mais rapidamente, o lixo que vizinhos pouco civilizados atiram para as propriedades desertas… e automóveis, por todo o lado, a impedir a circulação!

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Estas imagens mostram, apesar do que dizem os responsáveis por esta cidade, que o Centro Histórico merece mais e melhor do que aquilo que tem!!!

o não-património #2, por ssru

Especialistas em Reabilitação Urbana Integrada consideram os ‘caprichos da arquitectura’ como um dos grandes problemas das intervenções no Centro Histórico do Porto. Sob o estigma de ‘que se tem de deixar uma marca’ os arquitectos, principalmente os mal-formados em História Urbana, projectam edifícios com reduzida utilidade ou marcadamente dissonantes, para satisfação do seu ego.

Ignoram que o maior desafio de um novo projecto em núcleos antigos deveria ser integrar de tal forma o edifício que este passasse despercebido a todos. Noutro local da Cidade provavelmente o impacto seria menos assustador.

Um desses exemplos é, na nossa opinião a Casa-Museu Guerra Junqueiro na Rua de D. Hugo, em clara oposição com a reabilitação feita na mesma rua para a Sede da Ordem dos Arquitectos, que embora se note a presença de um estilo de autor, este faz uma integração no edificado existente digna de nota.

Mas gostaríamos de voltar ao local do artigo anterior: o eixo Rua Escura/Rua da Bainharia/Rua dos Mercadores, para mostrarmos alguns exemplos de “não-património”.

Estes dois exemplares datados de 1991 e 1987, respectivamente, são da autoria da Arq. Paula Silva – actual Directora do IPPAR, Direcção Regional do Porto – e promovidos pelo CRUARB.

O conjunto representado nas duas fotos é da autoria de dois arquitectos, Arq. Alfredo Resende e Arq. António Moura. É datado de 1996 e o promotor foi a FDZHP [sem palavras].

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Como vem sendo hábito deixamos o melhor para o final, uma obra da autoria do Arq. Alberto Marcos, datada de 1994 e promovida pela FDZHP.

Mesmo que este conceito seja gerador de alguma polémica, por haver correntes que defendem que ‘qualquer reabilitação é melhor que nada fazer’, acreditamos que por vezes, se fosse possível voltar atrás ou remover estes “elementos dissonantes”, o Centro Histórico ficaria certamente a ganhar.

O que mais assusta é que as mesmas pessoas que decidiam antes ainda o fazem agora, como é o caso do Arq. Rui Loza como administrador da Porto Vivo e da Arq. Paula Silva no IPPAR.

P.S. – datas, autorias e promotores in “Fichas de Obras – Cruarb 25 anos de reabilitação urbana”, 2000-2001

o ‘não-património’ #01, por ssru

A rubrica que aqui iniciamos, pretende demonstrar a carência de obras de reabilitação patrimonial, a ausência de cuidados, o vazio no património edificado do Centro Histórico.

Não podíamos ter começado por outro lado, apenas por aqui – Mercadores e Bainharia – que juntamente com a Rua Escura constituíam um dos eixos mais importantes da Cidade Medieval, ligando a zona ribeirinha e centro mercantil ao burgo episcopal e às principais vias medievais que saíam do Porto em direcção ao Minho, Douro e Trás-os-Montes, percorrendo por fora a muralha.

Foi uma das zonas mais ricas da cidade, onde os nobres, prelados e poderosos do Reino se instalavam quando se deslocavam ao Porto, rua de comerciantes e mercadores, zona de casas cuidadas, onde ainda podemos encontrar uma Casa-Torre.

Nós sabemos que tudo isto que dissemos até aqui significa ZERO para quem “cuidou” do Centro Histórico até hoje e para quem agora o diz que faz, que uma casa quinhentista (fotos 3 e 4) estar neste estado ou pior, é mais prédio menos prédio.

Ficam as imagens, não modificadas, da realidade…

Façamos a pergunta: como é isto possível, como podemos conviver com a nossa consciência, perante este espectáculo que não desaparece só porque as ruas ficam escondidas por Mouzinho ou S. João?

Falta referir que a quase totalidade destes edifícios e os restantes, nas mesmas condições, que aqui não figuram, são propriedade municipal ou de instituições públicas.